A partir de junho de 2017 uma série de cancelamentos de espetáculos artísticos, suspensão ou adiamento de exposições, perseguição e difamação de artistas na internet começou a chamar a atenção da opinião pública no Brasil. Este artigo parte das arenas de discussão proporcionadas por esses episódios para compreender um fenômeno que não é raro no país, mas que ganhou contornos distintos atualmente (Oliveira et al. Reference Oliveira, Camelo and Orlandini2022a, Reference Oliveira, Maiara and Sanglard2022b). O ano de 2017 foi considerado um marco no processo de censura às artes, devido à quantidade de casos ocorrendo em proximidade, às características comuns entre eles e à grande repercussão midiática que receberam (Duarte 2018; Velasco Reference Velasco and Duarte2018; Steuernagel Reference Steuernagel2019).
Mas como pesquisar a censura, se ela nem sempre é algo explícito? Como compreendê-la a partir das manifestações culturais se, no caso da censura prévia, ela impede sua concretude? Diante dessas questões e do objetivo de entender as ocorrências de censura às artes, perseguição ou criminalização de artistas que ocorreram no Brasil desde junho de 2017, a pesquisa aqui apresentada consiste no monitoramento das produções culturais censuradas e/ou alvo de ataques de grupos conservadores que tiveram notoriedade nacional.
Diversos autores se engajam no debate acerca do sentido das manifestações artísticas enquanto potências para nos conduzir a outros olhares e perspectivas (Marques Reference Marques2013; Rancière Reference Rancière2014). Para Hal Foster (Reference Foster2013), a sociedade contemporânea dispõe de pouco, ou nenhum, espaço destinado à crítica de arte, já que este espaço sofre com intimidação de grupos conservadores e interesses comerciais. O autor sustenta que a crítica foi esvaziada, perdendo até mesmo o espaço para o pluralismo. Impulsionada por poder, a crítica não é mais reflexiva quanto às suas próprias reivindicações (Foster Reference Foster2013, 168). Desse modo, as obras artísticas que reúnem aspectos provocativos ao status quo, são alvos de censura e criminalização. Contudo, apesar de tomarmos como pano de fundo o papel crítico da arte na formação da sociedade, não é objetivo deste artigo se empenhar em tal discussão.
A partir da utilização de métodos mistos, que envolveram coleta de dados em plataformas de mídias sociais (como Facebook, Instagram e Twitter), monitoramento de mídia jornalística e análise de conteúdo, criamos um banco de dados com casos emblemáticos envolvendo ação conservadora de julgamento ou criminalização da arte noticiados em veículos do mainstream (como El País, Folha de S. Paulo, G1, O Estado de S. Paulo, O Globo, Veja, entre outros) entre junho de 2017 e março de 2020. Foram considerados para o levantamento os episódios que contaram com algum tipo de reação, que vai desde a própria repercussão em âmbito nacional, até o debate nas mídias sociais e as ações desenvolvidas em resposta aos atos censórios, como protestos e montagens em locais alternativos. A partir de tais recortes, chegamos a quarenta e duas produções artísticas que se enquadraram nesses critérios.
Considerando que para melhor compreender tais casos é preciso contextualizar o histórico brasileiro de repressão às liberdades, partimos dos conceitos de autoritarismo, censura e liberdade de expressão. A partir de tal discussão teórica e contextual apresentamos os dados que demonstram, dentre outras coisas, uma tendência à institucionalização da censura no país, fomentada por agentes públicos que abusam da autoridade que detêm com respaldo de atores políticos, grupos religiosos e da sociedade civil.
O autoritarismo e seus sintomas
Ainda que o conceito de autoritarismo não seja consensual, podemos recorrer a algumas perspectivas frequentemente utilizadas para compreender a história política brasileira e ao seu legado para capturar as nuances de um fenômeno social contemporâneo que não alcança apenas o Brasil.
Diferentemente do exercício da autoridade, autoritarismo é o termo usado para designar um fenômeno, princípio ou gesto impositivo e dominador, que exige obediência e submissão buscando eliminar as possibilidades de discussão e negociação. Para Stoppino (Reference Stoppino and Bobbio2010), o autoritarismo pode ser considerado uma manifestação degenerativa da autoridade e se referir a três aspectos distintos: estrutura dos sistemas políticos; disposições psicológicas ou comportamentais; ideologia política. Fragoso (Reference Fragoso2011, 65) considera ainda um quarto aspecto, atrelado aos demais, que envolve a concepção de autoritarismo como um tipo de abuso do poder ou da autoridade: “É razoável que exista uma certa congruência entre eles: por exemplo, uma pessoa com propensões autoritárias sentir-se-á provavelmente à vontade numa estrutura de poder autoritária, achará provavelmente genial uma ideologia autoritária e pode tender a abusar do poder que tenha; mas isto não significa que os quatro aspectos do autoritarismo estejam sempre e necessariamente presentes ao mesmo tempo.”
Isso também significa que não é necessário estar em um regime político autoritário para que haja manifestação de autoritarismo. Pode-se, assim, identificar abuso de poder, comportamento e ideologia autoritários até mesmo em regimes democráticos.
E é exatamente em regimes que se dizem democráticos que, recentemente, tal fenômeno social tem sido observado com recorrência. Conforme Tóth (Reference Tóth2017), o autoritarismo vem passando por uma reinvenção nos últimos anos, sendo uma das características mais marcantes a de se travestir em fachada constitucional e afirmar seguir os princípios democráticos. “O autoritarismo moderno é um fenômeno multifacetado,” diz Tóth (Reference Tóth2017, 2, tradução nossa Footnote 1 ). Segundo o autor, nem mesmo países com longa trajetória democrática, como os Estados Unidos, estão imunes à eclosão de ideias e práticas políticas autoritárias.
Internacionalmente, diversos pesquisadores (Dresden e Howard Reference Dresden and Howard2015; Tóth Reference Tóth2017; Levitsky e Ziblatt Reference Levitsky and Ziblatt2018; Runciman Reference Runciman2018) têm identificado recessões democráticas e práticas dessa “nova roupagem,” nos termos de Tóth, do autoritarismo—seja pela ilegitimidade no exercício da autoridade ou no abuso de sua prática, seja pelo comportamento ou pela ideologia. Tal processo vem sendo nomeado como crise da democracia, ascensão da nova extrema-direita, democratic backsliding, backlash e virada conservadora. Apesar de adotarem pontos de vista distintos e terem como objeto empírico realidades diferentes, o que há em comum nessas perspectivas é a identificação que o século XXI comporta a convivência—em geral conflitiva—do autoritarismo com a democracia.
Este momento de recessão democrática enfrentado por muitos países é marcado não pela total ruptura institucional, mas por seu enfraquecimento e pelo desgaste interinstitucional, em geral conduzido por lideranças políticas que tratam com desprezo ou atacam as instituições das quais não fazem parte. É marcado também por tentativas de criar polarização política, estimular o embate entre grupos que se opõem, desacreditar a ciência e os pesquisadores, limitar a liberdade de expressão, atacar o jornalismo, censurar os costumes, reprimir performances e produtos culturais que não dialoguem com os interesses dos grupos que estão no poder, estimular expressões de ódio, ataques e atos de intolerância orquestrados na internet.
Ainda que tais práticas também possam ter ocorrido em outros momentos, é o fato de ocorrerem em diversas partes do mundo, serem conduzidas por lideranças eleitas democraticamente e serem praticadas de modo contínuo e planejado que chama a atenção de pesquisadores como Santos (Reference Santos2016), que defende não se tratar de atos isolados. Segundo o autor, é identificada uma onda conservadora nesta segunda década do século XXI, que se caracteriza como um fenômeno global, embora haja manifestações específicas em cada país.
Censura e liberdade de expressão
A prática censória, como bem lembra Sérgio Mattos (Reference Mattos2005), é exercida desde a Idade Média, pelos Tribunais da Santa Inquisição e movimentos de “caça às bruxas,” até hoje, seja por religiosos, reis, imperadores, seja por governantes eleitos. Com o desenvolvimento dos tipos móveis no Ocidente, a partir do século XV, toda obra impressa que não tivesse sido submetida à censura era proibida pela Igreja e pelo Estado.
A censura também não é uma novidade no Brasil. Desde os tempos da colonização, passando pelo Império e em todo o período republicano, ela foi praticada, porém intercalando momentos de maior e menor repressão. Cabe lembrar que o primeiro jornal brasileiro, o Correio Braziliense, era produzido em Londres e chegava ao Brasil como contrabando, por ser proibida a produção e impressão de periódicos em solo brasileiro.
A política colonial de Portugal procurava nos isolar do mundo através de políticas restritivas como o fechamento dos nossos portos para o comércio internacional e a proibição de fábricas, escolas superiores e universidades e a impressão de livros e jornais em solo brasileiro. Por conta disso, o primeiro jornal, o Correio Braziliense, surgiu apenas em 1808, ano da transferência da Corte para o Brasil e da liberação das restrições impostas pela política colonial (Lustosa Reference Lustosa2003). Contudo, o Correio Braziliense era editado e distribuído a partir de Londres, e assim podemos considerar que o primeiro jornal efetivamente impresso no Brasil foi a Gazeta do Rio de Janeiro, também lançado em 1808, cuja pauta se limitava à publicação dos decretos da Corte e à cobertura das atividades da família real exilada no Brasil (Azevedo Reference Azevedo2006, 92).
Antes disso, o Tribunal do Santo Ofício da Inquisição atuava desde 1591. E, em 1768, Marquês de Pombal já havia unificado numa mesma estrutura, a Real Mesa Censória, as práticas de censura aos livros e a publicação do índex (catálogo de obras proibidas).
Após a proclamação da República e a Constituição de 1891, o governo baixou, em 1897, o Decreto 557, que subordinava os espetáculos e as diversões públicas à censura policial. Em 1923, foi promulgada outra lei destinada a regular os abusos da imprensa, o Decreto 4.743. Durante a ditadura do Estado Novo (1937–1945), novamente houve o acirramento da censura, que se tornou mais sistemática. Em 1937, a Constituição promulgada estabelecia a censura prévia aos veículos de comunicação a fim de assegurar “a paz, a ordem e a segurança.” Em 1939, foi criado o Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP) para controlar especificamente esse tipo de produção.
Conforme Guilherme Fernandes (2018, 73), “para defender os sólidos valores morais da família brasileira,” valia tudo. Segundo ele, é neste âmbito que a mentalidade censória se forma e passa a legitimar as proibições.
Criado em 1940, o Serviço de Censura às Diversões Públicas (SCDP) objetivava separar a estrutura da censura de imprensa da censura de diversões públicas, mas, conforme Miliandre Garcia (Reference Garcia2009), sem apresentar rupturas drásticas com a estrutura anterior ou mudanças profundas no sistema censório. Todavia, se desde a década de 1940 a censura de diversões públicas permaneceu sob a tutela do chefe de polícia, sendo autônoma nos estados, com a ditadura a função passou a ser atribuída à União: “Desde a década de 1940, já existia toda uma legislação a respeito, que se aplicava às diversões públicas e se referia aos preceitos da garantia “da moral e dos costumes,” com a promulgação do Decreto-Lei nº 1077 [de 26 de janeiro de 1970], além das peças de teatro e filmes, os programas de televisão e de rádio, livros e revistas passaram a ser censurados antes de serem divulgados” (Covemg 2017, 226).
Foi no período da ditadura militar (1964–1985) que a prática da censura atingiu seu ápice, alcançando todas as esferas sociais. Redações de jornal empasteladas, jornalistas, artistas e opositores políticos perseguidos e assassinados, controle nas universidades e nos demais espaços de pensamento crítico, monitoramento nas salas de aula e frequentes apreensões de livros na casa de opositores do regime, análise prévia de composições musicais. Toda forma de produção cultural entendida como discordante dos valores pregados pela ditadura era considerada subversiva. O Decreto-Lei nº 1.077, assinado pelo presidente ditador Emílio Garrastazu Médici e pelo ministro da Justiça Alfredo Buzaid, representava um gesto de acirramento do controle social, já como desencadeamento autoritário posterior ao Ato Institucional Número 5 (AI-5):
A censura aos meios de comunicação—jornais, revistas, emissoras de rádio e de televisão—ou aos espetáculos artísticos e culturais, aos intérpretes de tais espetáculos, configura uma ofensa aos direitos fundamentais dos cidadãos, pelo impedimento, seja ao conhecimento do que acontece na vida do País, seja pela impossibilidade de manifestação sobre tais acontecimentos. Trata-se, pois, de uma ação em dois âmbitos: a censura que incide sobre questões políticas e a censura voltada para os “costumes.” De maneira ampla, pode-se dizer que, no período militar, a grande questão que provocou diferentes formas de censura foi aquela de natureza político-ideológica. As manifestações culturais e artísticas, ou seja, os “costumes,” que já eram censurados continuamente, tiveram, naquele período, o acréscimo de um olhar censor focado, também, no teor político desses espetáculos. Um exemplo disso são as músicas, as peças de teatro e tantas outras manifestações culturais censuradas. (Covemg 2017, 224).
Com o fim da ditadura e a posterior promulgação da Constituição de 1988—quando a censura foi extinta como prática institucional com amparo em lei, mantendo-se apenas a classificação indicativa de diversões públicas e de programas de rádio e televisão—a defesa das liberdades ganha espaço relevante no debate público.
Prevista em uma série de acordos internacionais dos quais o Brasil é signatário, como a Declaração Universal dos Direitos Humanos, o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos e a Convenção Americana sobre Direitos Humanos, a liberdade de expressão também consta em diversos artigos da Constituição de 1988. Sua inclusão em tais normas representa, portanto, um marco da luta contra a repressão e o cerceamento das formas de manifestação da sociedade:
O reconhecimento constitucional do direito de expressão compreende a possibilidade de exteriorização de crenças, convicções, ideias, ideologias, opiniões, sentimentos e emoções, pelas mais diversificadas plataformas informativas hoje existentes. A proteção conferida pelo direito de expressão vai além do ato de poder pensar e alcança a possibilidade de divulgar o que se pensa, com o mais variado conteúdo, visto que as mensagens não podem ser restritas em razão das motivações políticas, econômicas ou filosóficas que lhes sejam subjacentes. (Stroppa e Rothenburg 2015, 452)
Ainda assim, práticas autoritárias e gestos censórios continuaram sendo praticados no Brasil, ainda que menos frequentemente. Footnote 2 Nos anos 2000, dois casos chamam a atenção enquanto precedentes para os episódios que compõem esta pesquisa. Em 2006, a exposição Erotica, que ocuparia alguns espaços do Centro Cultural Banco do Brasil pelo país, foi interrompida antes de ser exibida ao público de Brasília. Já em 2012 a exposição The Ballad of Sexual Dependency, da fotógrafa Nan Goldin, recebeu recursos para ser realizada no Oi Futuro, mas foi cancelada antes.
Apesar de a liberdade de expressão ser um elemento vital para a sociedade moderna (Nordenstreng Reference Nordenstreng and Carlsson2016; Costa e Júnior Reference Costa and de Sousa Junior2018; Miguel Reference Miguel2018a; Oliveira e González-Fernández Reference Oliveira2018), este é um conceito que se apresenta em constante disputa na contemporaneidade. Numa sociedade pluralista e democrática, qual o limite para a liberdade de se expressar? Por outro lado, tomando também como base os pressupostos eticamente democráticos, até que ponto é válido o cerceamento das liberdades individuais e coletivas? É útil pontuar que nosso artigo não tem a intenção de responder a essas questões empiricamente, todavia, é importante deixar explícita a expressividade de tais problematizações em esfera pública.
Para Luis Felipe Miguel (Reference Miguel2018a), desde o período pós-golpe de 2016, a liberdade de expressão brasileira está sob risco, com as proibições de peças teatrais, exposições artísticas, perseguições a jornalistas, cerceamento das reflexões crítico-educativas, entre outras ações. Segundo o autor, há situações em que a liberdade de expressão deve ser controlada para sustentar a preservação de outros direitos. No entanto, há uma tensão entre a empiria de casos particulares e a teoria, já que a ambiguidade dos discursos promove diferentes interpretações, principalmente quando se trata de criações artísticas. Por este motivo, em relação a tais manifestações, Miguel (Reference Miguel2018a, 56) defende a prevalência da liberdade de expressão como um padrão, “mesmo quando sensibilidades são ofendidas.”
Segundo Kunelius (Reference Kunelius and Carlsson2016), defender a liberdade de expressão como sagrada e incontestável significa, a partir de uma perspectiva política, oferecer aos fundamentalistas um cenário onde o diálogo dá lugar à demanda por conversão. Por isso, o autor propõe três formas de pensar a liberdade de expressão: a partir de uma noção que nos ajude a viver em um mundo culturalmente e politicamente hibridizado; por meio de uma concepção do valor epistemológico da liberdade de expressão, que reconhece certos atos de fala como injustificáveis; de acordo com uma compreensão mais nítida da fronteira entre o privado e o público.
Proteger a liberdade de expressão não abarca o proferimento de discursos intolerantes, com conteúdos racistas, xenofóbicos, homofóbicos entre outros, já que esses discursos, além de serem responsáveis pela privação de direitos e pela exclusão social de certos grupos, em alguns casos, ocasionam até mesmo a violação física dos já discriminados (Stroppa e Rothenburg Reference Stroppa2015).
“Ninguém pode ser livre à custa da liberdade de um outro. Pelo fato de as pessoas só se poderem individuar pela via da socialização, a liberdade de um indivíduo une-se à de todos os outros, e não apenas de maneira negativa, por meio de limitações mútuas” (Habermas Reference Habermas and Sperber2002, 119). O pensamento habermasiano, ao colocar a construção do indivíduo como dependente do processo de interação em sociedade, alega que a construção dos limites corretos é resultado de uma autolegislação exercida de forma coletiva. Para ele, em um sistema composto por livres e iguais, todos precisam se reconhecer como autores das leis às quais estão vinculados como destinatários, mesmo que individualmente. Assim, no processo democrático, a chave para a garantia de liberdades iguais é o uso público da razão, legalmente institucionalizado. Footnote 3
Dos primeiros casos às ações em escala
O ano de 2017 foi selecionado como marco do recorte temporal do objeto empírico que envolve esta análise justamente por estar dentro do período identificado pela bibliografia que trata da recessão democrática e por ser o momento em que atos de repressão e censura às artes começam a ocorrer de modo articulado e inserido no contexto de importante ruptura política no Brasil.
Foi a partir do impeachment de Dilma Rousseff (PT), no ano anterior, que uma nova agenda política se instaurou no Brasil e que se tornou mais frequente o gesto de oprimir as mais diversas formas de crítica ao governo. Há também a característica de incentivar que grupos de apoiadores políticos reajam aos produtos culturais que carreguem tal crítica ou que contrariem as moralidades por eles defendidas. Com a posse do vice-presidente Michel Temer (MDB) foi inaugurado um retorno às medidas de austeridade e às políticas neoliberais (Snider Reference Snider2017).
De acordo com Pérez-Liñán (Reference Perez-Liñán2018), o impeachment se configurou como um novo padrão de instabilidade para as democracias latino-americanas após as elites civis perceberem que os golpes militares tradicionais se tornaram indesejáveis. O modo como tal processo foi articulado entre setores conservadores, parte da mídia mainstream, oposição parlamentar e parcelas da sociedade insatisfeitas com o governo (Snider Reference Snider2017) representa um marco para a ascensão da extrema direita no Brasil.
Ainda que a atuação de grupos conservadores contrários à livre expressão artística e adeptos à prática de censura no país não esteja circunscrita ao momento político atual, chama a atenção o modo como, agora, eles organizam ataques online, contribuem com a circulação de desinformação e promovem verdadeira destruição de reputações. Portanto, não resta dúvidas de que a partir de 2017 é estruturada uma nova onda conservadora e um ciclo de repressão às artes, sustentado pela atuação em plataformas de mídias sociais.
Na coletânea Arte, Censura e Liberdade, Luisa Duarte (2018) e diversos autores que compõem a obra, como Suzana Velasco, Moacir dos Anjos e Luiz Camillo Osorio, também citam o ano de 2017 como sendo um divisor de águas nesse processo. Se desde o fim da ditadura militar (1964–1985) e da promulgação da Constituição de 1988, os atos de censura pareciam ocorrer de modo isolado, eles observam que, a partir de 2017, passaram a ser geridos de forma orquestrada, sustentados por histeria moralista e grupos ultraconservadores. “Não é novidade a reação a obras de arte em nome da moral e dos bons costumes, com a consequente interrupção de mostras pelas próprias instituições. Tampouco o conservadorismo é traço estranho à sociedade brasileira. No entanto, o momento de ameaças à democracia, radicalização de posições políticas, ausência de diálogo e a facilidade de propagação de notícias falsas na internet contribuíram para que se configurasse um cenário de violência à liberdade de expressão no país” (Velasco Reference Velasco and Duarte2018, 15).
A criminalização dos movimentos sociais junto ao cerceamento da liberdade de expressão e ao sentimento de moralidade crescente a partir de 2017 desencadeou uma série de protestos e censuras às manifestações culturais. Os marcos desse movimento podem ser considerados três episódios arbitrários e polêmicos em que artistas foram censurados e julgados moralmente por expressarem suas obras.
O primeiro caso que ganhou destaque na mídia foi a instalação de Maikon Kempinski, nomeada de DNA de Dan (Figura 1). O ato de censura ocorreu enquanto o artista se apresentava em Brasília e foi surpreendido por policiais militares que o impediram de dar continuidade à performance. Detido e acusado de ato obsceno, o artista também viu ser destruída a bolha de plástico que abrigava a performance.
O segundo episódio de grande destaque em 2017 envolveu a exposição Queermuseu: Cartografias da Diferença na Arte Brasileira. Cercada de polêmica após seu fechamento às pressas, a mostra recebeu duras críticas de grupos conservadores que viram nas obras apologia à pedofilia, zoofilia e blasfêmia. Já a terceira ação marcante ganhou as redes sociais. A polêmica envolvendo a performance La Bête, do coreógrafo Wagner Schwartz, iniciou-se após apresentação única no Museu de Arte Moderna de São Paulo. Na ocasião, foi gravado um vídeo, no qual uma menina—que estava acompanhada da mãe—interage tocando a canela e os pés do artista enquanto ele estava nu. Um trecho editado do vídeo viralizou nas redes sociais e, em busca de holofotes, setores da sociedade civil, atores políticos e líderes religiosos se posicionaram condenando o museu e o artista, conforme aponta a Figura 2, que consiste em uma declaração do deputado federal e pastor Marco Feliciano, em sua página no Facebook.
Esses três casos emblemáticos carregam algumas características comuns: foram amplamente discutidos pelos usuários de plataformas de mídias sociais, noticiados nos principais veículos jornalísticos do país, os artistas envolvidos sofreram ameaças e/ou os espaços culturais que sediaram os atos foram alvos de manifestação. Especialmente a exposição Queermuseu e a performance La Bête foram utilizadas por atores políticos como forma de autopromoção em defesa da moral e dos bons costumes.
A partir desse momento, há crescimento do número de episódios de censura, que coincide com a ascensão do conservadorismo político no país. A eleição de Jair Bolsonaro (atual PL), em 2018, à Presidência do Brasil é outro elemento importante nesse processo, visto que sua postura autoritária e combativa tem sido usada frequentemente para atacar seus opositores. Outro hábito de seu governo é defender as práticas da ditadura militar, Footnote 4 agredir discursivamente jornalistas e artistas que se posicionam contrariamente a alguma medida por ele adotada ou que divirjam das moralidades conservadoras por ele sustentadas. Cabe ressaltar que a força política de Bolsonaro também ajudou a alçar atores políticos conservadores aos cargos legislativos em âmbito federal. Footnote 5
É nesse contexto político que se identifica o recrudescimento dos atos de censura e intolerância contra os movimentos culturais no Brasil, o que promoveu uma onda de cancelamentos, suspensões ou encerramento antecipado de performances, instalações, exposições, espetáculos musicais e teatrais, ataques e linchamentos online, violência física, simbólica e verbal contra artistas e trabalhadores do setor cultural. Percebeu-se a interrupção de tal onda apenas em março de 2020, quando a Organização Mundial da Saúde (OMS) declarou a pandemia do novo coronavírus, com a necessidade do distanciamento social e, portanto, da suspensão de eventos com aglomeração de pessoas. Este, portanto, é o recorte temporal da análise aqui empreendida: junho de 2017 a março de 2020, conforme a Tabela 1.
As manifestações de resistência e ataques foram—em muitos casos—ambientados nas redes sociais. Autores argumentam que as tecnologias digitais são potentes ferramentas para participação política (Bimber Reference Bimber2017; Boulianne Reference Boulianne2009; Marques Reference Marques2006; Wang Reference Wang2007), mas questionam o potencial da internet em fomentar o confronto e intolerâncias já que o ambiente assume alto grau de polarização, em muitos casos decorrentes das fake news (Pereira e Caldas Reference Pereira and Caldas2017; Rossini Reference Rossini2017; Santos Reference Santos2016; Stroppa e Rothenburg Reference Stroppa2015). Os estudos recentes colocam as plataformas de redes sociais enquanto arenas em que a sociedade civil e grupos políticos organizam suas ações, disputam a atenção de possíveis apoiadores e combatem os argumentos de seus opositores. Utilizada tanto por ativistas do campo progressista quanto por coletivos de orientação ultraliberal e de extrema direita, a internet passa a ser entendida como espaço para disputa de repertórios, discursos e narrativas que resultam em atos de intolerância e incivilidade recorrentes. Apesar das especificidades de cada caso, em geral, as redes eclodiram discursos repletos de ódio, difamação e desinformação sobre as mobilizações artísticas apreendidas nesta pesquisa. As fake news circularam na tentativa de incriminar artistas que foram acusados falsamente de cometer crimes de blasfêmia, pedofilia, zoofolia, vilipêndio religioso, entre outros, com a proposta de validar uma agenda política moralista e conservadora que reprime as liberdades artísticas.
Todavia, as ações não ficaram restritas às plataformas de mídias sociais, havendo casos de violência física e material. Um dos episódios mais emblemáticos foi o atentado contra a sede da produtora Porta dos Fundos, no Rio de Janeiro, em 24 de dezembro de 2019. Na ocasião, dois coquetéis molotov foram lançados contra a fachada da produtora, ocasionando um incêndio. O caso foi relacionado com o movimento promovido contra o filme Especial de Natal Porta dos Fundos: A Primeira Tentação de Cristo, produzido pelo Porta dos Fundos para a Netflix. Na ocasião, grupos religiosos estimularam o boicote ao filme e à gigante do streaming.
Apesar do início desse movimento conservador ter ocorrido em 2017, em 2018 os gestos continuaram, mas também houve reação de parcelas da sociedade em defesa da liberdade de manifestação artística. A reunião em um espetáculo—Domínio Público—de quatro artistas que jamais haviam trabalhado juntos é considerada por Steuernagel (Reference Steuernagel2019) como gesto importante e marco da resistência. A montagem ocorreu em 2018 e o que eles carregavam em comum era o fato de, no ano anterior, terem sido atacados por grupos de extrema direita que cada vez mais policiam a prática artística no contexto da virada conservadora no Brasil. Os artistas que participaram da performance foram Wagner Schwartz (La Bête), Elisabete Finger (artista e mãe da menina que tocou no artista em La Bête), Renata Carvalho (O Evangelho Segundo Jesus, Rainha do Céu) e Maikon Kempinski (DNA de Dan).
Monitoramento das ações conservadoras
Após identificarmos nesses episódios e no contexto político uma possibilidade analítica de gestos de censura em escala, criamos um método de monitoramento e coleta de dados que nos permitiu compreender não apenas os atos isolados de censura, mas um panorama mais amplo envolvendo os episódios que ocorreram entre junho de 2017 e março de 2020, bem como suas características comuns ou específicas. Passamos então a realizar monitoramento de mídia buscando identificar produções artísticas que tivessem sido alvo de ataque público, censura prévia, cancelamento, suspensão ou outro tipo de ação atrelada às formas de censura, até mesmo as mais sutis.
Este estudo faz uso de métodos mistos, que envolvem coleta de dados em plataformas de mídias sociais (como Facebook, Instagram e Twitter), monitoramento de mídia jornalística e análise de conteúdo. Em um primeiro momento, a coleta foi realizada a partir de buscas por palavras-chave no buscador de notícias Google. Assim, foi criado um banco de dados com os episódios envolvendo ação conservadora de julgamento ou criminalização da arte noticiados em veículos do mainstream de circulação nacional à época (como El País, Folha de S. Paulo, G1, O Estado de S. Paulo, O Globo, Veja, entre outros) entre junho de 2017 e março de 2020.
A segunda etapa da coleta de dados envolveu a raspagem por meio do software DMI Twitter Capturing and Analysis Toolset (Borra e Rieder Reference Borra and Rieder2014), que permite recuperar e coletar tweets do Twitter. O acionamento do software foi feito a partir de um conjunto de hashtags e palavras-chaves que se relacionavam com os casos de censura coletados previamente, como por exemplo: #342artes; #censuranao; #somostodosmam; #queermuseu; #pedofilianaoearte, entre outros.
A criação do banco de dados considerou os eventos que tinham em comum três elementos: ter sido alvo de ação conservadora de julgamento ou criminalização da arte; ter repercutido nacionalmente na mídia mainstream; e ter promovido ou estimulado reação e/ou mobilização em defesa das manifestações artísticas. Com base nisso, conseguimos identificar quarenta e duas produções artísticas que se enquadraram em tais critérios. Para compreender melhor o que ocorreu e de que modo foram alvo de práticas censórias, selecionamos conteúdos jornalísticos veiculados em sites noticiosos atrelados a periódicos de circulação nacional e aplicamos análise de conteúdo (Bardin Reference Bardin1994; Krippendorff Reference Krippendorff and Krippendorff2007) aos materiais coletados, de modo a criar um amplo e detalhado banco de dados que indicasse as principais características de cada episódio.
A análise de conteúdo é uma técnica de pesquisa frequentemente utilizada no campo da comunicação política para compreender de forma sistemática o conteúdo das mensagens, podendo elas serem textos jornalísticos, literários, conversações digitais, entre outras modalidades. O objetivo é formular inferências reproduzíveis e válidas que fazem sentido quando articuladas ao contexto. Apesar de não haver consenso na bibliografia sobre as etapas de execução da análise de conteúdo, a partir de Hansen e colegas (Reference Hansen, Cottle, Negrine and Newbold1998) e Krippendorff (Reference Krippendorff and Krippendorff2007), aplicamos seis fases, que são identificação da questão de pesquisa e hipóteses; seleção de mídia e amostra; definição de unidades de análise e categorias; construção de livro de códigos; codificação e testes de confiabilidade; interpretação dos dados, validação e replicabilidade.
Para este estudo, criamos dez categorias analíticas, sendo elas tipo de manifestação artística (ex. performance, exposição, espetáculo teatral); data; local da ocorrência; tipo de ação censória (como apreensão ou depredação de obras, detenção, fechamento do espaço, cancelamento, entre outras); tipo de motivação para o ato (racismo, apelo sexual, acusação de crime, teor religioso); atores ou grupos sociais que atuaram de modo a censurar (espaços culturais, governos, polícias, poder judiciário, entre outros); atores ou grupos sociais que manifestaram apoio à censura; ocorrência de agressão ou violência física; reação à censura (campanhas e mobilizações, ações alternativas, uso de hashtags, boicote); ocorrência de ataques contra artistas nas redes sociais.
A partir da aplicação das categorias, codificamos o material—cujo teste de confiabilidade resultou em um Alpha de Krippendorff entre 0,86 e 1—e realizamos tanto análise quantitativa, com o auxílio do software estatístico SPSS, quanto qualitativa. O objetivo foi compreender as ocorrências das manifestações de repúdio às produções artísticas, especialmente aquelas que passaram a ocorrer com mais frequência e notoriedade a partir de 2017, buscando identificar como e quando ocorreram, quais foram os principais agentes, o espaço midiático que receberam, se estiveram envoltas em circulação de desinformação e como a classe artística reagiu. A pesquisa buscou ainda refletir sobre as noções de autoritarismo, censura e liberdade de expressão a partir dos quarenta e dois casos estudados.
Quase 36 por cento das ocorrências foram referentes ao cancelamento dos espetáculos e das exposições antes mesmo que ocorressem, constituindo censura prévia. O cancelamento posterior, com a suspensão ou proibição dos eventos artísticos ocorreu em 26,2 por cento dos casos. Apesar de terem ocorrido em menor escala, as práticas mais truculentas, como apreensão de materiais que estavam em exibição, depredação e destruição das obras de arte e detenção de artistas também foram registrados e ocorreram, somados, em 16,6 por cento das ocorrências analisadas (Figura 3).
Os dados revelam que parte significativa dos atos analisados ocorreram nos estados do Rio de Janeiro e de São Paulo, que concentraram 43 por cento dos registros. Na sequência apareceram Minas Gerais, Brasília e Rio Grande do Sul, como pode ser observado na Figura 4. A maior concentração no eixo Rio-SP pode ser justificada pelo fato de especialmente suas capitais serem consideradas os principais centros culturais do país, concentrando também ampla agenda cultural.
Em relação aos momentos em que os atos censórios ocorreram, é notável que se distribuíram por todo o período analisado, tendo como picos os meses de setembro de 2017, setembro de 2018 e julho de 2019. A análise não nos permitiu identificar relações significativas entre os episódios e as datas, mas indica crescimento significativo em 2019. Foram nove casos em 2017, nove em 2018, dezenove em 2019 e cinco em 2020 (sendo relevante destacar que neste ano o levantamento foi apenas até março).
Merece ainda ser considerado que o período eleitoral de 2018 estimulou parte da reação conservadora às produções artísticas. Relatórios sobre liberdade de expressão e de imprensa da Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji), da Associação Nacional de Jornais (ANJ), e do Conselho de Comunicação Social—este publicado pelo ITS Rio—indicam que em períodos eleitorais há aumento dos pedidos de censura prévia no Judiciário brasileiro. Footnote 6 Nas eleições de 2018, houve recorde desse tipo de ação censória, conforme o levantamento da Abraji, que monitora desde 2002 os pedidos judiciais de remoção de informações (seja previamente ou após publicação). De acordo com a Figura 5, é possível perceber também um aumento do número de casos a partir de 2018.
O ano de 2018 foi marcante para o contexto político-social brasileiro. Desde seu início, a ruptura de direitos transfigurou-se em intolerância às obras de arte, em ataques à livre manifestação e à liberdade acadêmica (Avritzer Reference Avritzer, Avritzer, Starling, Braga and Zanandrez2019). Tal anti-intelectualismo, alinhado à retórica antissistema, à interpretação do adversário político como um inimigo a ser eliminado, ao uso direcionado das plataformas de mídias sociais, à ascensão do conservadorismo mundial, à polarização reativa, à desconfiança em relação aos processos democráticos e à persuasão populista—entre outros fatores—constituíram o cenário eleitoral brasileiro de 2018 (Feres e Gagliardi Reference Feres, Gagliardi, Avritzer, Starling, Braga and Zanandrez2018; Miguel Reference Miguel2018b; Avritzer Reference Avritzer, Avritzer, Starling, Braga and Zanandrez2019; Ituassu et al. Reference Ituassu, Lifschitz, Capone, Mannheime and Tesseroli2019; Mounk Reference Mounk and Landsberg2019; Norris e Inglehart Reference Norris and Inglehart2019; Solano Reference Solano and Abranches2019).
Outra inferência importante é a de que algumas produções foram exibidas várias vezes antes de serem censuradas, demonstrando que antes de 2017 parecia haver mais tolerância com as produções ou menos engajamento dos grupos envolvidos em repreendê-las e questioná-las, como é o caso da performance-instalação DNA de Dan, de Maikon Kempinski, que estreou em 2012 e passou por diversas capitais brasileiras até ser repreendida por policiais em Brasília, em 2017.
Os tensionamentos ocasionados após o impeachment de Dilma Rousseff e a ascensão da base conservadora de apoio a Jair Bolsonaro parecem ter sido um componente fundamental para solidificar os gestos de intolerância e repressão baseados em moralidades relativas a questões de gênero, raça e espectro político. Com a eleição de Bolsonaro à Presidência, os grupos ultraconservadores encontraram o apoio político—e até mesmo o respaldo—que almejavam para perseguir todo tipo de manifestação artística que não pactuasse com seus ideais. Tal fator justifica o crescimento de nove para dezenove casos por ano entre 2018 e 2019, conforme nosso levantamento.
Em 2019, o pronunciamento de Damares Alves na Conferência de Ação Política Conservadora (CPAC) Brasil é uma demonstração desse apoio. Damares comandava o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos no governo Bolsonaro e fala de um “exército de conservadores”, que trabalha para dificultar a tramitação de pautas progressistas junto ao Congresso Nacional. Footnote 7 No podcast Retrato Narrado, a jornalista Carol Pires demonstra como esse “exército,” composto também por políticos e lideranças religiosas, atua para promover desinformação, ameaçar e atacar personalidades que defendem bandeiras em desacordo com as posições dos grupos ultraconservadores.
É a partir do governo Bolsonaro que tal “exército” ganha força para, além de pressionar parlamentares, atuar junto ao governo Federal de modo a barrar as políticas públicas e culturais voltadas ao respeito à diversidade. A partir dos dados coletados em nosso levantamento, é possível identificar a institucionalização da repressão à arte e os gestos de censura que partem de instituições públicas e autarquias. Dentre as quarenta e duas produções artísticas aqui analisadas, como aponta a Figura 3, treze episódios de censura foram praticados pelos governos municipais, estaduais ou federal, o que corresponde a 31 por cento. Se esse número for somado às ações executadas pelas polícias e por representantes políticos (como parlamentares), alcançam quase 55 por cento das ocorrências (Figura 6). Isso sem contar que alguns espaços de cultura (responsáveis por 19 por cento dos casos) são geridos com recursos públicos e por funcionários públicos ou que ocupam cargos de confiança por indicação política.
Em abril de 2019, a presidência do Banco do Brasil retirou do ar um comercial e demitiu o diretor de marketing a pedido do presidente Jair Bolsonaro. Footnote 8 A peça publicitária audiovisual tinha o propósito de representar a diversidade e atrair o público jovem e, por isso, contava com narrativa coloquial, jovens brancos e pretos, com cabelos de cores e cortes diversos, além de uma personagem transexual. Footnote 9 Espetáculos aprovados em edital da Caixa Cultural também foram cancelados antes mesmo de ocorrerem. Um deles foi Gritos, da Cie Dos à Deux, que estrearia entre 19 e 22 de setembro de 2019. Após envio de material de divulgação para a Secretaria de Comunicação Social do governo Federal, a instituição foi informada que o espetáculo não poderia ser apresentado. Footnote 10
Mas não foram apenas as instituições ligadas ao governo Federal que praticaram censura. Em Minas Gerais, o prefeito da capital Alexandre Kalil (atual PSD) Footnote 11 determinou o cancelamento da performance Coroação a Nossa Senhora dos Travestis, do coletivo Academia TransLiterária, na Virada Cultural de Belo Horizonte (julho 2019). Na Paraíba, o show de Linn da Quebrada na Parada LGBT de João Pessoa (agosto 2019) foi cancelado pela Fundação Cultural da cidade Footnote 12 .
No Rio de Janeiro, o então prefeito da capital, Marcelo Crivella (Republicanos), protagonizou uma série de atos censórios (Figura 7), sendo um dos mais repercutidos a determinação para que a Bienal do Livro recolhesse os exemplares da HQ Vingadores: A Cruzada das Crianças (setembro 2019). A justificativa foi que o romance gráfico de Allan Heinberg e Jim Cheng, Footnote 13 publicado pela Marvel, continha imagens de dois rapazes se beijando, o que seria “inapropriado.” A organização do evento se negou a retirar os livros e, em resposta ao gesto censório, o influencer Felipe Neto comprou exemplares da obra para serem distribuídos gratuitamente ao público.
Para além do abuso de poder e do comportamento censório de alguns dos representantes políticos citados como exemplo, é preciso considerar que seus gestos encontraram respaldo social e base de apoiadores, o que é perceptível quando identificamos os atores sociais que se manifestaram a favor da censura. Além dos representantes políticos e governos, que participaram e/ou declararam apoio a 59 por cento dos casos analisados, grupos de civis (33 por cento), igrejas e movimentos religiosos (26 por cento) e formadores de opinião (14 por cento), como digital influencers, também fortaleceram os movimentos conservadores de patrulhamento das artes.
Deve-se considerar ainda a atuação de grupos de pressão ligados aos movimentos da nova extrema-direita e a instituições privadas, que também atuaram favorecendo práticas censórias ou estimulando a perseguição a manifestações artísticas que abordassem temáticas sensíveis. A atuação do Santander Cultural, por exemplo, ao encerrar antecipadamente a exposição Queermuseu é emblemática dessa situação e do papel do financiamento privado em produções e instituições culturais (Orlandini et al. Reference Orlandini, Fernanda and de Oliveira2021). Quando a imagem de alguma instituição sofre o risco de ser atacada ou atrelada a produções artísticas que ferem seus valores ou ameaçam seu lucro, tirar ou migrar recursos desses setores é uma alternativa.
Conforme mostra a Figura 8, as justificativas apresentadas para cancelar ou suspender eventos culturais, determinar o recolhimento ou a apreensão de obras de arte, perseguir artistas e pressionar gestores de centros culturais, concentram-se principalmente em questões envolvendo sexualidade (ocorrência em quase 55 por cento dos casos), crítica às instituições (governo e atores políticos) (50 por cento), acusação de crime (26 por cento), teor religioso (19 por cento) e racismo (12 por cento). Footnote 14
Não é surpreendente que a questão envolvendo sexualidade e diversidade de gênero, especialmente a partir da representação do corpo nu e de corpos estigmatizados (como os de travestis e transexuais), tenha motivado mais da metade das ocorrências deste levantamento. Essa foi a principal motivação censória observada (Orlandini et al. Reference Orlandini, Fernanda and de Oliveira2021). Vale ressaltar que os conteúdos têm como ponto em comum a abordagem de conteúdo queer, aspirações que questionam a heteronormatividade ou que problematizam os corpos abjetos. Como exemplo de produções que foram alvo de censura ou de ataques que partiram de setores da sociedade civil estão a exposição Queermuseu, as performances DNA de Dan, La Bête e Coroação da Nossa Senhora das Travestis. Tais produções sendo criminalizadas e tratadas como obsenidade, pornografia e até pedofilia, como foi o caso de La Bête. Footnote 15
Conforme Daniela Labra (Reference Labra and Duarte2018), ainda que a nudez acompanhe a história da arte desde os tempos mais remotos, como à época dos desenhos rupestres e dos anjos das pinturas renascentistas, a dificuldade da sociedade em diferenciar as representações do corpo natural para o erótico e o pornográfico indica uma parte do problema. Mas, para além da falta de informação, ela destaca a má-fé daqueles que buscam atribuir apelo sexual ao que não tem.
Para além de não aceitar o corpo como ele é—apenas nu—a sociedade brasileira, na avaliação de Labra (Reference Labra and Duarte2018), carrega a característica de criticar o que não conhece e de acusar antes de checar. Ela considera que a histeria causada pela cena da criança acompanhada da mãe assistindo à performance La Bête carrega esse aspecto, considerando que a cena contemporânea do Brasil é uma das mais interessantes do mundo, mas desconhecida e até mesmo odiada por setores da população brasileira.
Em relação aos casos chamados de racismo na Figura 8 (12 por cento do corpus), cabe-nos explicitar que se trata de conteúdos que abordavam cor e etnia, tendo, justamente por isso, causado a ira de grupos intolerantes. Um dos casos, por exemplo, uma exposição de arte indígena—a mostra M’Bai—amanheceu vandalizada. No episódio, apontou-se a possibilidade de motivação por racismo étnico, já que a mostra buscava inaugurar um processo de visibilização da arte feita por povos originários. Considerado como um tipo de ataque à arte, o ato depredatório tem motivações em seu arcabouço que perpassam, provavelmente, a ameaça ao status quo sentida por grupos dominantes (cis-hétero-branco), que predominam no cenário de produção artística e cultural do país. Vale destacar que a ofensiva contra grupos indígenas e comunidades tradicionais evidencia uma narrativa de grupos conservadores, aliada, inclusive, a preocupações econômicas (Niederle et al. Reference Niederle, Grisa, Everton and Soldera2019).
Reação às práticas censórias
Os episódios de censura—prévia ou posterior—pautaram debates acirrados na esfera pública. A sociedade civil e os atores políticos debateram os casos na busca da legitimação de suas convicções. Nas redes sociais, a polarização acerca do tema eclodiu em ações organizadas: cancelamentos, boicotes, campanhas e hashtags aglutinaram tanto narrativas opressoras que criminalizavam artistas, quantos movimentos de defesa da arte e da liberdade artística. As redes sociais colaboraram para a construção de sentidos, servindo como espaço de disputa, negociação e definição de narrativas entre a sociedade civil e os atores políticos.
Entretanto, o debate online não foi a única reação aos episódios de censura. Protestos de rua, ações organizadas e campanha com personalidades públicas também foram observadas a partir do corpus analisado. Dentre as diversas reações aos episódios de censura, a mobilização por hashtag e as ações alternativas foram as mais frequentes, como mostra a Figura 9.
Dentro do corpus analisado, 61,9 por cento das manifestações suscitaram em ações alternativas. A categoria em questão compreende intervenções que foram realizadas em resposta aos episódios de censura e que utilizaram da arte como argumento de contestação às ações censórias. Como exemplo, o já mencionado espetáculo Domínio Público, reuniu artistas que sofreram com censura e retaliações para se apresentarem juntos em ação orquestrada contra a censura. A exposição Queermuseu e A Voz do Ralo é a Voz de Deus também tiveram ações alternativas em enfrentamento à censura, com montagem de exposição em espaços improvisados após o cancelamento. O primeiro, após o fechamento inesperado em Porto Alegre, foi reinaugurado no Parque Lage (RJ) através de financiamento coletivo. Já o segundo, foi apresentado na calçada em frente à Casa Brasil-França (RJ)—local no qual deveria ter estreado se não fosse o cancelamento inesperado da exposição pela Secretaria de Cultura do Estado a pedido do então governador do Rio de Janeiro, Wilson Witzel.
Além da apresentação em lugares alternativos, a categoria ações alternativas integram outras reações às ações censórias. A distribuição gratuita de livros em sinal de protesto, como exemplo do HQ que foi distribuído gratuitamente na Bienal do Livro no Rio de Janeiro após censura, e a realização de eventos, como foi o caso do Sarau da Liberdade que ocorreu na capital gaúcha após censura do Queermuseu, são exemplos de ações alternativas realizadas para denunciar os atos autoritários e demonstrar que a sociedade e os artistas podem responder de modo criativo contra a censura, conforme expõe a Figura 10.
Manifestações e protestos, online e offline, também surgiram após as ações censórias e aglutinaram reivindicações em defesa à liberdade artística. As campanhas travadas nas redes sociais, em muitos casos, funcionam como eixo central de organização das vozes ressonantes, o que resultava em ações para além dos limites da internet.
Protestos de rua mostraram a força dos movimentos, que deixaram o universo digital para se manifestar publicamente em ação direta nas ruas, como no caso da exposição Faça Você Mesmo Sua Capela Sistina, de Pedro Moraleida, e a peça O Evangelho Segundo Jesus, Rainha do Céu. O primeiro, exibida no Palácios das Artes em Belo Horizonte (MG), revoltou a bancada evangélica da Câmara de Vereadores e Deputados da capital. Apesar de não obterem judicialmente o cancelamento, os políticos mobilizaram seus apoiadores para protestar com faixas pedindo o fechamento da exposição. Por outro lado, a tentativa de censura recrutou artistas, professores e apoiadores que protestaram a favor da arte e da liberdade de expressão, contando com personalidades com notoriedade na esfera pública como Caetano Veloso. A segunda, que já havia sido encenada na capital mineira em 2016, volta em 2017 cercada de polêmicas. Após o Tribunal de Justiça de São Paulo derrubar a liminar que proibia a exibição do espetáculo na cidade do interior paulista, a peça se apresenta em Belo Horizonte incitando uma onda de protestos, que reuniram pessoas nas ruas a favor da arte, mas também mobilizaram grupos conservadores que saíram às ruas na busca por legitimação do discurso opressor e calunioso na esfera pública.
Apesar de muitas mobilizações ocorrerem no domínio offline, foi na internet que os grupos buscaram organizar suas ações, ao passo que recrutavam novos apoiadores, na tentativa de legitimar seu ponto de vista na esfera pública. Sem as barreiras geográficas que dificultam a participação nos protestos de rua, artistas, políticos e líderes de opinião se uniram para combater a criminalização da arte em mobilizações e protestos on-line. A campanha 342 Artes, Contra a Censura e Difamação (Figura 11), foi organizada em 2017 pela produtora Paula Lavigne após a suspensão e polêmica em torno da exposição Queermuseu e da performance La Bête. Na ocasião, Lavigne reuniu cem artistas para atuarem no compartilhamento de vídeos nas redes sociais. Os artistas plásticos Vik Muniz e Adriana Varejão, os cantores Caetano Veloso e Marisa Monte, as atrizes Fernanda Montenegro, Malu Mader e Zezé Polessa foram alguns dos nomes que participaram da campanha.
Após o lançamento, a campanha passou a estimular a organização de artistas e ações alternativas contra a censura. Assim, iniciou uma campanha que repercutiu nacionalmente na defesa de diversos artistas que sofreram censura ou tentativa de silenciamento. De outro lado, a contrarreação foi forte. A ala conservadora de políticos e sociedade ordinária se viu ameaçada e orquestrou o compartilhamento de notícias falsas para difamar e estimular o discurso de ódio, e, em alguns casos, até atos de violência, como o exemplo da depredação na sede do coletivo Porta dos Fundos, que teve o episódio de Natal censurado pela Justiça do Rio de Janeiro até o Supremo Tribunal Federal derrubar a decisão.
Considerações finais
O surgimento articulado de pautas políticas conservadoras e de movimentos civis que criminalizam a arte nos levou à assimilação de que poderia estar se constituindo no Brasil um novo ciclo de conservadorismo. O levantamento de quarenta e dois episódios de censura ou criminalização das produções culturais entre junho de 2017 e março de 2020 confirmou tal hipótese e demonstrou alguns aspectos relevantes. O primeiro deles é o movimento crescente de repressão e de cerceamento da liberdade de expressão. Enquanto em 2017 e 2018 foram nove casos por ano, em 2019 saltaram para dezenove.
Foi justamente em 2019 que Jair Bolsonaro tomou posse como presidente da República e colocou na agenda a perseguição a artistas e intelectuais que se posicionassem contrariamente ao seu governo ou defendessem pontos de vista diversos daqueles aprovados por seus apoiadores. Nesse período, a quantidade de ações de censura conduzidas pelos governos e especialmente pelo Governo federal, algumas por determinação do presidente, chama a atenção.
As ações censórias praticadas por representantes políticos se enquadram no conceito de autoritarismo aqui discutido, especialmente no que se refere às disposições comportamentais e ao abuso do poder ou da autoridade. Nitidamente, tanto Bolsonaro quanto o então prefeito do Rio de Janeiro Marcelo Crivella agiram de modo autoritário nos exemplos mencionados no artigo, violando preceitos democráticos e abusando do poder que detinham. Tais gestos, contudo, não podem ser compreendidos de modo isolado, pois são praticados em estrutura institucional que ainda carrega resquícios do autoritarismo e contam com o aval de parcelas da sociedade que pactuam com esses modos de repressão.
Compreender o contexto de recessão democrática atual e o crescimento de movimentos de ultradireita é, portanto, fundamental para entender a ambiência em que as produções culturais se tornam alvo mais frequente de censura, perseguição e ataques. Para tal, foi necessário entender o histórico autoritário brasileiro e o modo como, com recorrência, a liberdade de expressão é colocada em xeque. Aliás, relembramos que o conceito de liberdade de expressão é fruto de disputas na contemporaneidade, trazendo à tona reflexões sobre o limiar tênue entre a defesa das liberdades e das expressões de ódio. Tal impasse nos leva a questionar se haveria limites para tais liberdades e quais seriam eles. Ainda que tenha sido discutida nesse artigo, essa questão não era o foco da abordagem aqui proposta, merecendo, assim, uma abordagem em profundidade em estudos futuros.
Os quarenta e dois casos analisados possuem ao menos três características em comum, utilizadas como critério de inserção no levantamento: foram alvo de ação conservadora de julgamento ou criminalização da arte; tiveram repercussão nacional na mídia mainstream; envolveram reação e/ou mobilização em defesa das manifestações artísticas. Além disso, ocorreram no período entre junho de 2017 e março de 2020. Por conta de tal recorte utilizado, os casos reportam principalmente ocorrências em cidades maiores, especialmente em capitais, como Belo Horizonte, Brasília, Porto Alegre, Rio de Janeiro e São Paulo. O eixo Rio-SP, especialmente, concentrou mais casos.
Se um aspecto positivo da pesquisa—a análise qualitativa dos dados referentes aos episódios alvo de censura ou de ação conservadora—foi possibilitado por esse recorte da abrangência nacional e favoreceu a reflexão sobre os casos, por outro lado, poderia levar à impressão de que foram poucos casos em relação à dimensão do Brasil. Cabe aqui ressaltar que dezenas de outros episódios ocorreram em cidades de porte pequeno e médio, ainda que sem terem sido noticiados nos veículos da mídia mainstream de circulação nacional. Tais eventos por vezes ganharam cobertura de jornais locais ou foram revelados e discutidos em plataformas de mídias sociais, o que também merece ser alvo de reflexão. Todavia, alguns casos ficaram de fora das arenas de visibilidade pública, mesmo que envoltos na ambiência estimulada pelos movimentos das capitais ou pela onda conservadora que conquistou espaços. Ainda que não tenham sido abordados nesta análise específica, merecem ser considerados, inclusive em estudos futuros.
Dentre os resultados do trabalho empreendido, merece destaque o fato de a principal justificativa/motivação para os gestos censórios ter sido atrelada à sexualidade, seja porque as produções culturais envolviam o corpo nu, seja porque tinham representação do corpo homossexual ou transsexual, ainda que esses corpos não carregassem qualquer conotação erótica ou pornográfica. Isso demonstra o quanto setores da sociedade brasileira ainda temem a nudez, desconhecem a arte e enxergam perversidade e crime onde não existe.
Esse não aceitar o outro como sendo diferente, a falta de empatia pela diversidade e a má-fé em constranger artistas e querer moldar a arte para que agrade apenas alguns pontos de vista e grupos sociais revela a incompreensão do aspecto crítico e transgressor inerentes a boa parte das produções culturais. Em alguns dos casos analisados neste estudo, fica nítido que grupos de interesse também se articularam de modo a criminalizar a arte e a instigar que as pessoas perseguissem e atacassem artistas, especialmente nas plataformas de mídias sociais, criando uma ambiência hostil e pouco salutar para o debate público. Em vez de discutir ou criticar as obras ou o contexto em que foram produzidas, houve a preferência pelos ataques pessoais, pelo discurso de ódio ou pela difamação. Em casos extremos, como os que envolveram as performances DNA de Dan e La Bête, discutidas no artigo, os artistas foram alvo de acusações falsas que levaram a denúncias de crimes, como pedofilia ou atentado ao pudor, sem que suas produções contivessem qualquer ato que levasse a isso. A circulação de desinformação pelas mídias sociais, sem dúvida, contribuiu para confundir as pessoas e empobrecer o debate.
Os artistas e defensores da democracia, todavia, não se calaram. Uma série de ações em reação à censura ou às tentativas de criminalização da arte foi organizada para chamar a atenção da sociedade e revelar os gestos autoritários. Seja em defesa da liberdade de expressão, seja contra o preconceito ou à perseguição, foram realizados atos ao ar livre e protestos, criadas hashtags e até mesmo realizadas ações alternativas. Se proíbem o espetáculo dentro do centro cultural, por que não realizar na rua? Se a montagem não é permitida em uma cidade, por que não promover em outra? Se querem recolher os livros dos stands de vendas, por que não distribuir os exemplares gratuitamente? Esses foram alguns dos caminhos encontrados pela sociedade civil para responder ao arbítrio. Desse modo, conquistaram ainda mais público e visibilidade midiática. Em outros casos, contudo, a contrarreação foi forte, também com protestos e até com episódios de apreensão ou depredação de obras de arte e atos de violência, como foi o caso da bomba jogada na sede do coletivo Porta dos Fundos, demonstrando que o ultraconservadorismo é organizado e capaz de cometer absurdos em nome das bandeiras que defende.
Os casos de gesto autoritário e censura analisados neste artigo podem ser percebidos como modos de extremismo da crítica à cultura que tiveram impacto nas políticas culturais, nas decisões das instituições (públicas ou privadas) financiadoras da arte e na opinião pública. Visando melhor explorar esses aspectos, outros estudos e propostas metodológicas - sejam atreladas à semiótica, à estética ou à recepção - podem ser desenvolvidos no sentido de proporcionar distintas perspectivas que contribuam com a reflexão sobre censura e liberdade de expressão na contemporaneidade.