Vinte minutos antes do final do documentário da brasiliense Maria Augusta Ramos Justiça (2004) a doutora Fátima Maria Clemente, juíza e figura central do filme, é empossada para o cargo de desembargadora da 4a Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro. Logo após as solenidades da cerimônia da posse, um colega profere um discurso que visa a não apenas comemorar a ocasião, mas também frisar o problema de uma criminalidade crescente incrementada por uma legislação obsoleta: “Basta de covardia e submissão ao poder dos criminosos. Basta de chorar os nossos mortos, feridos e humilhados na sua dignidade, para continuar depois quase insensíveis, acomodados, aplicando leis que não guardam mais a menor intimidade com a realidade que vivemos. Basta senhor presidente. Basta!” (Figura 1).
Na cena seguinte, Suzana, a jovem esposa grávida de Carlos Eduardo (réu sendo julgado pela juíza Clemente por furto de carro), está no hospital aguardando o iminente nascimento de sua filha. Logo depois, Elma, a mãe de Carlos Eduardo, embala a criança e comenta a semelhança com o pai. Sogra e nora discorrem sobre o processo de registro da menina. Suzana não pode registrá-la como filha de Carlos Eduardo, já que ele está na prisão esperando sentença. “Se fosse o contrário,” diz Suzana, “ele poderia registrá-la no meu nome.” Na seguinte cena, vemos finalmente, Carlos Eduardo sendo condenado; Elma chora sem consolo. A câmera, fixa no final do corredor do edifício, a observa enquanto ela, consternada, abandona o tribunal. Esse é o final de Justiça (Figura 2).
Estas cenas tão significativas expressam a proposta presente tanto em Justiça como em Juízo (2007) e Morro dos Prazeres (2013), os dois documentários seguintes da diretora. Através de profunda observação das instituições estatais no Rio de Janeiro (tribunais, força policial, instituto de menores), Ramos examina os mecanismos e dispositivos do dia-a-dia. Os filmes descobrem uma verdadeira mise-en-scène da justiça em seus vínculos complexos com as populações das favelas e as periferias do Rio de Janeiro.
Os três filmes interrogam o funcionamento dessas instituições nas suas práticas cotidianas e sua participação, através de pequenos e grandes procedimentos, na construção de uma outriedade irredutível. O olhar de Ramos procura revelar como noções de cidadania, questões de gênero e raciais, a violência gerada pelo abismo social e a criminalização da pobreza são partes fundamentais do teatro da justiça e da repressão.
A voz da juíza Clemente é grave, autoritária, intimidante. É na inflexão e no tom dessa voz, na forma como ela se dirige ao réu, apenas olhando-o e sempre duvidando de sua narrativa, onde as diferenças entre ambos (de classe, raça, educação, poder e hierarquia) se materializam. Carlos Eduardo era certamente um outro antes de entrar no tribunal, mas o seu lugar (social) é agora visível e inexoravelmente reificado pelos mecanismos estéticos e políticos que se desdobram diante de nós, espectadores (Figura 3).
Assim como em Justiça, também Juízo oferece um minucioso retrato da sociedade brasileira através da sigilosa observação de um espaço determinado e os embates nele travados. Aos 38 minutos de começado o filme, uma voz feminina em off chama pelos números de identificação dos menores presos, enquanto a câmera se concentra numa parede de azulejos. Imediatamente, três mulheres se debruçam contra uma grade para conferir que aqueles que respondem estejam efetivamente presentes na cela. Uma em particular os interroga sobre o uniforme: eles estão de chinelo, camisa, short? Por que eles estão dormindo sem colchonete? Os meninos também indagam; ela se identifica como uma inspetora da vara da infância. O seu papel é verificar as condições (terríveis) das instituições, nesse caso, o (hoje extinto) Instituto Padre Severino, espaço destinado à internação de jovens infratores (Figura 4).
Juízo acompanha a circulação de alguns desses menores infratores entre dois universos, a II Vara de Justiça do Rio de Janeiro (infância e adolescentes infratores) e o Instituto Padre Severino.
Como a lei proíbe mostrar rostos e nomes de menores infratores, a diretora convocou dez jovens em condições socioeconômicas semelhantes às dos personagens verdadeiros para “atuar” no seu lugar. No caso dos julgamentos, Ramos usou duas câmeras para filmar as audiências, sendo uma delas permanentemente situada na juíza e na promotoria. A diretora cria um contra-campo ficcional quando substituiu as cenas onde apareciam os depoimentos dos jovens reais por outras com atores não profissionais, que reproduziram os textos ditos por aqueles sendo realmente julgados.
Observa-se, nos filmes de Ramos, um diálogo com os trabalhos de Eduardo Coutinho (Edifício Master, 2002; Peões, 2004) João Moreira Salles (Santiago, 2006), Jorge Furtado (Ilha das Flores, 1989). Esses documentaristas utilizam os recursos da ficção para organizar uma realidade que consideram impura. Ao escalar outros jovens, moradores de bairros pobres, para substituir os acusados no filme, Ramos desafia o espectador, ao mesmo tempo sugerindo que esses mesmos atores não profissionais podem passar a ser os menores infratores em um futuro muito próximo.
Escapando qualquer caracterização genérica, Ramos não somente visibiliza a violência institucional, o aberto racismo, e o abuso que esses menores, todos negros, sofrem cotidianamente nesses espaços. Ela também questiona as próprias definições e fronteiras entre documentário e ficção. O tribunal passa a ser uma encenação, um teatro da justiça, que gera consequências materiais nefastas para os menores ali julgados. Como no cinema de Jean Rouch e Coutinho, verdade e teatro, no filme documentário, acontecem ao mesmo tempo.
Nesse sentido, ninguém encarna essa teatralização com o comando da juíza de menores Luciana Fiala. A juíza, personagem “real,” representa simultaneamente um papel. Ela é estridente, paternalista, autoritária. Seus gestos são estudados e concebidos perante a audiência no tribunal, e para a câmera de Ramos. A juíza, quanto mais teatral, mais verdadeira. A sua performance corporiza repetidamente as diferenças raciais, de classe, educação e status existentes tanto no sistema de justiça como na sociedade. É nessa performance que se confirmam os ordenamentos sociais; que define e redefine esse outro que é negro, menor e pobre, e que deve ser afastado do convívio social.
Os sermões de Fiala evocam os de uma mãe autoritária que admoesta um filho ou filha desobediente. A óbvia factual diferença é o poder quase absoluto que a juíza ostenta sobre o destino desses jovens. Em harmonia com a juíza Fátima Maria de Justiça, Luciana Fiala assume a sua posição de poder e a exerce abertamente e com orgulho. Os menores são só formalmente ouvidos, mas nunca escutados. Os argumentos da defensoria quase sempre dispensados. O desfecho é conhecido de antemão. Esses meninos e meninas são rotulados como indivíduos moralmente fracos, faltos de honestidade e perseverança (Figura 5).
Essa outriedade está na fundação dos vínculos retratados em Morro dos Prazeres, crônica sobre o dia-a-dia da comunidade do mesmo nome no Rio de Janeiro, um ano após a instalação de uma UPP (Unidade de Polícia Pacificadora) no lugar em 2006. Como nos documentários anteriores, Maria Augusta Ramos não interatua com os personagens nem os entrevista. A câmera os acompanha em suas ações. Policiais e moradores da comunidade interagem, mais uma vez, num espaço que funciona como lugar da disputa social. O objetivo formal da UPP, combater e desarticular o crime organizado do tráfico de drogas nas comunidades (resultado de uma estratégia tomada em conjunto pelas esferas municipal, estadual e federal nos anos 2000) é enunciado por diferentes policiais ao longo do documentário (Figura 6).
O discurso da UPP dirigido à comunidade, em uma primeira instância, se desdobra como radicalmente diferente ao proferido pelo desembargador reproduzido ao início deste ensaio. O crime, a violência inerente aos pobres, o tráfico de drogas não são parte essencial da narrativa que circula em diferentes reuniões filmadas. Há uma ênfase no trabalho comunitário da polícia, na importância de entender as verdadeiras necessidades dos moradores, na presença das mulheres (policiais) no processo de pacificação, destacando como a sua condição de gênero permite uma melhor acolhida pelos residentes do morro (Figura 7).
Porém, como ocorre nos filmes de Ramos, as imagens falam por si mesmas. Gestos e olhares contradizem os discursos articulados pelos agentes de polícia. Incursões da UPP ocorrem constantemente, e nelas, jovens negros são invariavelmente revistados, assediados, e humilhados. O trato dos policiais no cotidiano é paternalista, agressivo e, acima de tudo, inflexível (Figura 8).
Quando um dos líderes comunitários discute com um dos policiais as regras para organizar uma festa na quadra, lhe são impostas normas arbitrárias e ele é tratado como criança. A contenda em torno da festa, encerra um dos paradoxos na disputa pelo espaço. A UPP fixa as regras, ocupa, e domina um lugar que lhe é alheio e, por tanto, adverso; os moradores são estrangeiros na sua própria comunidade. Nesse intercâmbio, se revela claramente a condição de outro em que o morador é reificado. Minutos depois, vemos esse mesmo líder comunitário que, colérico, explicita o problema: “mora aqui governador, prefeito, mora aqui pra saber como essa merda funciona, meu irmão” (Figura 9).
O trabalho de Ramos revela como esse outro é definido no imediatismo da ameaça à integridade física e patrimonial das outras classes na sociedade brasileira. As instituições abordadas nos filmes estabelecem ordem e integração social como parte central de seu projeto. Simultaneamente, esse esforço de organização da sociabilidade se reduz a isolar, afastar do convívio social, reafirmando a alteridade desse outro seja o menor infrator ou moradores de comunidades e periferias. Alteridade que, quando encenada pela mídia, se transforma em evento espetacular ligado exclusivamente à dramatização da violência. Ramos revela o não-evento, o cotidiano da justiça e do aparelho repressivo na sua interação com homens e mulheres marginalizados.
Os seus filmes se afastam da representação do fato extraordinário que irrompe no dia-a-dia, na linha de Ônibus 174 (José Padilha, 2002). A diretora também se resiste a mostrar a violência ostensiva, produto do enfrentamento entre os traficantes e o Bope (Batalhão de Operações Especiais) presente em Notícias de uma guerra particular (João Moreira Salles, 1999) e ficcionalizada nas duas Tropa de Elite (2007 e 2010, José Padilha). Certamente os documentários de Padilha e Moreira Salles foram influentes no projeto de Ramos. Porém em Morro dos Prazeres, o tráfico de drogas, elemento onipresente nas comunidades, não é a principal questão do filme. A imagem que explicita a permeabilidade do tráfico surge só na primeira cena, quando crianças brincam de polícia e bandido (Figura 10).
Ao momento de conclusão deste ensaio, Maria Augusta Ramos está apresentando no Brasil o seu filme mais recente, O processo (2018). Sucesso na 68 Berlinale em fevereiro desse ano, premiado em diversos festivais (Visions du Reel, Documenta Madrid) e apresentado no festival “É tudo verdade” em São Paulo em abril, o filme retrata o intricado processo midiático, político e jurídico que levou ao impeachment da Presidenta Dilma Rousseff em agosto de 2016. Abrindo com um significativo plano da Esplanada dos Ministérios em Brasília, o plano mostra a polarização política expressada no tapume que separa os manifestantes a favor e em contra do impeachment da Presidenta, à espera da votação na Câmara dos Deputados, no dia 17 de abril de 2016 (Figura 11).
Hoje, a América Latina se encontra em uma severa crise estrutural do Estado e das instituições que o conformam. Os mecanismos da justiça, radicalmente politizados, estão sendo questionados por grande parte da sociedade civil. O ex presidente do Brasil e líder histórico do Partido dos Trabalhadores, Luiz Inácio Lula da Silva, está preso como resultado de um (outro) processo que, marcado por abusos, falta de transparência e arbitrariedades, tem sido amplamente rejeitado por segmentos da sociedade civil, políticos, parlamentares e instituições nacionais e internacionais. Qualquer crítica aos métodos, aos juízos ou às condenações das instituições jurídicas se interpreta na mídia convencional como uma ataque à democracia ou uma adesão à corrupção. A plataforma estética e política de Ramos e os seus recursos expressivos presentes no conjunto da sua obra, são uma referência essencial no debate público nos tempos que correm e são parte de um cinema relevante e urgente.